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sexta-feira, 31 de julho de 2015

Dia 13 – Aguas Calientes – Machu Picchu - Cusco – 29/07

Finalmente, Machu Picchu.


Pela primeira vez, decidimos fazer uma divisão na viagem. Eu e a Fran, que estamos nos recuperando dos piripaques, decidimos não ver o sol nascer em Machu Picchu. A Lili e a g, bem mais animadas e muito mais inteiras, resolveram enfrentar os perrengues para ver o sol nascer na cidade perdida inca. Que perrengues? Acordar (acordar?) às 3h da manhã, tomar banho, partir para a fila da compra do ônibus que leva até a entrada do parque, esperar duas horas em filas (no frio), e, com sorte, chegar antes das 6h30 para ver o sol nascer. Fora a saúde, eu achei particularmente toda a ideia, literalmente, um programa de índio, cinco cocares da escala quéchua-cusquenha. Eu e a Fran dormimos até às 7h, tomamos o melhor café da manhã da viagem, descansamos com um super banho da melhor ducha da viagem, e, praticamente sem filas, partimos com os ônibus para Machu Picchu. Claro que a gente exagera para não ficar arrependido depois, né?

Taí o bicho. Wayna Picchu é a montanha mais alta, atrás de Machu Picchu.


A estrada é no meio da selva – Machu Picchu está na floresta, em uma mistura de montanhas e puro verde, muito diferente de tudo o que vimos antes no Peru. É também uma estrada deslumbrante.

Chegando no parque, confesso que, inicialmente, a chateação das hordas de turistas (5.000 pessoas vão a Machu Picchu diariamente nesta época do ano), que subiam e desciam as ruínas como formigas nas escadas de serra pelada, tiraram bastante a minha satisfação com o lugar. E depois de tanta ruína, de ver os guias repetindo as mesmas coisas das dezenas de lugares por que passamos, fiquei com um certo clima de enfado e de já vi isto antes. Mas, mais do que as ruínas, pelo menos pra mim (e as meninas jamais concordariam comigo – aliás, já estavam me chamando de crica nesta hora e se insistisse acho que iria apanhar), a graça de Machu Picchu é o seu espetacular entorno e não tanto as ruínas. Para um cético, não há energia especial ou mágica ou ritual ou mistério. As ruínas, ruínas dos séculos XV e XVI, só me fizeram lembrar, o tempo todo, como os gregos, mais de 1000 anos antes, foram mais interessantes que os incas em quase tudo – na arte, na política, na arquitetura, na filosofia, na matemática, na medicina. O espetáculo da cultura inca é o espetáculo de um povo indígena sobre os demais indígenas das américas – mas é bom lembrar que é uma civilização que não chegou, sequer, à descoberta da roda. São os tempos irracionais, místicos, e de profunda e necessária mea culpa da violência do ocidente, que fazem o encanto contemporâneo de Machu Picchu. Bom, eu fiquei pensando assim até subir o Wayna Picchu.

Começo da trilha do Wayna Picchu.
Vista de Machu Picchu (no centro-direito da foto, acima), a partir do Wayna Picchu.
G e o rio Urubamba - alto do Wayna Picchu.


O Wayna Picchu é a montanha que fica em frente à cidade – está em todas as fotos clássicas de Machu Picchu. Quando compramos o passeio, compramos também o direito à subida da montanha. É uma subida de 1h, mais uma descida de uma 1h e, ficando meia hora no cume, um passeio total, supostamente, de 2h30. Nós fizemos tudo isto, mas em cerca de 4h. A Fran e a g, que haviam visto um vídeo do Youtube sobre a escalada, estavam muito receosas – mas, todos nós fizemos o cume. E todo mundo desceu as escadarias de Wayna Picchu, a parte mais perigosa, com desenvoltura. A Fran, então, estava radiante – a primeira escalada. Agora estou cobrando que ela também acampe – ainda há esperança. Isto tudo, somado ao fato que há bem menos gente em Wayna Picchu e, certamente, a melhor vista de Machu Picchu, acalmou os meus ânimos de chatice e fez com que finalmente eu começasse a gostar realmente do lugar. A subida de Wayna Picchu e a vista de Machu Picchu com os vales ao redor foi a melhor coisa que fizemos na viagem. Top da viagem, certamente.
Tenso: a descida do Wayna Picchu. O templo da lua aparece à esquerda. A Fran está descendo sentada, no cantinho.
Conseguimos!
Água, água!

Cansados, não tínhamos mais pique para uma tour na cidade com um guia. Resolvemos voltar para a entrada do parque, comer alguma coisa, pegar o ônibus e depois o trem. Desta vez, não iríamos parar em Ollantaytambo, mas ir direto para Cusco, em uma viagem de 3h. Todos desmaiamos no hotel. Nossa viagem começava a acabar.

Dia 12 – Valle Sagrado/Aguas Calientes – 28/07

Trabalho com lã de alpaca, no modo antigo.

Habilidade.

O dia começou mais cedo. Preparamos mochilas para dormir em Aguas Calientes, o vilarejo base para conhecer Machu Picchu e deixamos as malas no hotel. Grimaldi nos busca e começamos o passeio em Chinchero, onde comprei um milho cozido espetacular, de grãos brancos e graúdos. Com mais um furo no nosso boleto turístico (um passe obrigatório para visitar a maior parte das atrações próximas de Cusco), entramos em novas ruínas e passamos por uma igrejinha, também construída sobre templos incas. Em chinchero, também conhecemos peruanas que fazem artesanato de alpaca à moda antiga, tudo como os índios faziam: da lavagem da lã ao tingimento dos tecidos. As meninas piraram com as explicações. Mas não gostaram dos preços.

Um homem feliz com um autêntico milho cozido peruano.

 
Chinchero.
De Chinchero, nas estradas espetaculares do Valle Sagrado, chegamos nas Salinas, onde uma gigantesca extração de sal, usada desde os incas, cobre toda uma montanha. São piscinas brancas, que, por meio de canais estreitos, vão sendo preenchidas de água salgada que, com a evaporação, se transformam em puro sal. A estrada para Salinas é uma faixa estreita de terra que margeia precipícios – como o fluxo de turistas é grande, está apinhada de ônibus, vans, táxis, caminhonetes e carros. Volta e meia, como aconteceu conosco, o fluxo emperra, porque não há espaço para o fluxo da ida e da volta. Então, alguém que está subindo ou descendo precisa dar ré até encontrar um espaço para a passagem.

A feiura do Vale Sagrado.
Não é horrível?


Grimaldi é bastante prudente ao volante, cordial (o que é uma raridade em se tratando de motoristas peruanos), mas não tem a melhor das destrezas e estava estressado quando precisou dar ré. O trânsito é o caos no Peru – as pessoas não só são estressadas, mas também calhordas ao volante. Se você intenta entrar na sua frente, porque precisa virar à esquerda na próxima quadra, não só ninguém vai dar passagem, como vão fazer de tudo para que não seja possível a sua vontade. É selvagem, truculento, com altos níveis de testosterona. Grimaldi sofreu com a ré e o motorista de um dos ônibus gritou o suficiente para provar toda a sua estupidez.

Minha mãe disse para eu pedir dois soles.
Salinas.


Das Salinas, almoçamos em Urubamba. Grimaldi nos diz que só há restaurantes buffet na cidade – não sei se é verdade, mas onde ele nos levou era onde ele não precisava pagar, certamente um esquema das agências. O lugar tem comida mais ou menos e a g não quis comer. No fundo do restaurante, um índio, em pé, faz música ruim ao vivo. A música peruana é legal até um momento, até o segundo ou terceiro dia de viagem – depois de quase duas semanas escutando a mesma coisa, a mesma flautinha, as mesmas escalas, as mesmas melodias, você descobre por que esta é a música que você só escutaria voluntariamente aqui – a música brasileira é infinitamente melhor, em qualquer critério de comparação, e, por isto, ao contrário da peruana, é exportada. Hordas de turistas vão chegando ao restaurante e o lugar não tem nenhum apelo realmente autêntico.

Eu adoro heavy metal, sabe.


Grimaldi, durante o almoço, esclarece que não iremos mais para Moray, mais terrazas e ruínas incas – para o desespero da g, que queria ver esta ruína mais do que as demais. Depois de muita conversa, ponderando sobre o tempo restante e sobre o horário da nossa saída de trem para Aguas Calientes, decidimos fazer Moray. São círculos concêntricos, com diferentes microclimas, e presume-se que aqui era uma espécie de laboratório agrícola para os incas.


Pessoal tenso para não perder o trem para Aguas Calientes.


De Moray, partimos para Ollantaytambo. É a última cidade do vale sagrado – daqui, pegamos o trem para Machu Picchu. Ollantaytambo também tem ruínas incas – elas são bem impressionantes, com uma escadaria que lembra as pirâmides e, como fica no final do vale, circundada por um anfiteatro de montanhas. Não bastasse isto, é um vilarejo muito charmoso – talvez o mais charmoso de todo o Valle Sagrado. É um lugar para voltar e dormir – andar pelas ruelas, conhecer os locais, visitar com calma as ruínas. No nosso caso, como já estávamos no final da tarde, tivemos pouco tempo para contemplar, mas o suficiente para observar a última tecnologia inca contra terremotos: a união de paredões de pedras com pedras estreitas e compridas.

Tecnologia inca contra terremotos.


Comprei bastões de esqui para a Fran, tomamos um último café na ladeira da estação de trem e, já noite, partimos para Aguas Calientes. No trem, conhecemos parte de um grupo de sete mulheres mineiras que estão viajando desde a Bolívia – todas simpáticas e animadas.


Quando chegamos em Aguas Calientes, para a nossa alegria, o hotel fica em frente ao trilho e, mais do que isto, o Casa Andina é excelente. Para completar, o hotel, de cortesia, nos deu um quarto superior – sorteamos entre nós e, graças ao bom deus sol inca, eu e a Fran ficamos com ele. A diferença de quarto era grande: maior, com ar-condicionado e vista para o rio caudaloso e pedregoso que passa ao lado. Fizemos nossos planos para amanhã: Machu Picchu.

Dia 11 – Valle Sagrado – 27/07

Primeiro mirante do Vale Sagrado


Das vantagens de viajar em quatro pessoas: dá pra alugar um guia particular, com carro, e fazer o Valle Sagrado com o roteiro que escolhemos, no tempo que acharmos ideal – dividido em quatro pessoas, não custa um absurdo. E montamos um plano para dois dias.

Fran triste no Vale Sagrado.


Como estamos em um hotel desconhecido para a maioria das agências, combinamos com sair às 9h em frente ao Control de San Jeronimo – o posto de polícia, quatro quadras do Fuente de Aguas, onde estamos.

Terrazas de Pisac

 
Pessoal #xatiado
No horário, aparece um índio tímido, Grimaldi, que dirige um Toyota Pryos azul-marinho. Ele fala quechanhol (mistura de quéchua, a língua dos Incas, com o espanhol), é baixinho (descobrimos que a altitude faz com que as estaturas sejam baixas – é a norma por aqui) e, a cada duas ou três frases, balbucia um humhum. O jeito é de japonês – e ele fala um pouco de japonês e nos diz que a entonação do quéchua é parecida com o japonês.

Lugar feio.

 
Nosso guia fala quechuanhol.
Aos poucos, vamos saindo de Cusco, subindo as montanhas que circundam a cidade, e vales e picos nevados começam a aparecer. Grimaldi para em um mirante à beira da estrada – ali, como em todos os mirantes à beira da estrada, há um menino com uma alpaca que cobra um sole para fotos. As crianças são treinadas desde os dois ou três anos a pedir soles para fotos – um pai, que também foi criado assim, observa de longe. Mesmo com todos os indicadores positivos da economia peruana – que, atualmente, são bem melhores que os indicadores brasileiros – ainda há muita pobreza. Do mirante, paramos em uma feirinha de artesanato – são sempre as mesmas coisas, os preços é que variam, às vezes para mais às vezes para menos.

Sacsaywamán

 
Cusco a partir da vista de Sacsaywamán
O valle sagrado é sagrado por conta do rio Urubamba e das excepcionais condições climáticas para o plantio. É daqui que saem os produtos para os restaurantes de Cusco. E é aqui também que encontram, novamente, as terrrazas incas, muitas vezes até o cume das montanhas. É deslumbrante e as cidadezinhas ainda preservam o ar andino original. No passeio programado para hoje, Pisac (terrazas de plantio), PukaPukara (observatório do exército inca), Tambomachay (templo de águas) e Sacsaywamán (um templo religioso, com rochas gigantescas, que também foi palco de batalhas entre incas e espanhóis). Chega uma hora, cansa um pouco ver tanta ruínas e é bem verdade que ainda existe muita especulação sobre o que cada pedaço de pedra significa.


Na volta, ficamos novamente na Plaza de Armas e, no meio da tarde, almoçamos de novo no Bodega 138 – excelente. Mas eu tomei mais uma dieta de Pollo, a canja peruana.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Dia 10 – Cusco – 26/07

A dona do nosso hotel disse que é assim que os casais de Cusco tiram fotos. Eu acreditei.


A dona do nosso hotel, Delfina, quer nos apresentar as relíquias de família que estão no hall em que tomamos o café da manhã. Há um quadro do século XVII (diz ela) que é do estilo cuzquenho. Há móveis de antiquário, prataria e jogo de café de porcelana chinesa. É meio rococó e Delfina diz que precisamos tirar uma foto ao modo Cuzquenho.

Começamos o dia subindo as ladeiras de São Jerônimo, o bairro onde estamos. São tão íngremes e estreitas quanto as do centro histórico – mas não há lojas nem turistas. É um jeito melhor de conhecer o dia-a-dia da cidade. Subimos até a pracinha principal com a igreja.

Em frente à catedral de Cusco.


Dali, pegamos táxi para o centro histórico. Desta vez, agora que sabemos que o preço correto não é 40 soles (o que pagamos antes), saiu por 10 soles – ah... esta cultura latino-americana da picaretagem...

Lili em frente à catedral - foto da Fran.


No centro histórico, começamos pela catedral e fizemos o tour proposto pelo áudio guia. É indiscutivelmente uma das mais impressionantes igrejas que eu e a Fran já visitamos. Não tanto pela imponência  (na Europa, as coisas são mais imponentes), mas pela originalidade e história. Há um cristo negro aqui. E também a primeira cruz trazida da Europa para América – imagine o significado disto para os índios daqui. Foi uma aula magnífica em um cenário espetacular.


Relíquias do museu pré-colombino - uma filial do museu Larco, de Lima.


Da catedral, saímos para o almoço – no Bodega 129. Eu comi a “dieta de pollo”, que é a canja levanta defunto peruana. A única diferença para a nossa canja é que vai macarrão cabelo de anjo no lugar do arroz. Estava boa – mas é claro que se eu estivesse melhor, teria provado o que as meninas pediram (uma pizza) ou um bom bife de alpaca.

Da bodega, saímos para uma maratona de museus (Pré-colombino, uma filial do Larco, e Artes Regionales). É realmente inacreditável a arte primitiva (e pré-inca) do Peru. Já estávamos impressionados com o Larco de Lima e aqui não foi diferente. Há muitas coisas próximas do cubismo – como se sabe, Picasso ficou bastante interessado na arte primitiva. É de cair o queixo.

Dos museus, seguimos para a rua Sol, onde havia um barracão de artesanato (mais em conta que no centro histórico, com as mesmas coisas) que as meninas precisavam visitar. Eu fiquei na pracinha central, com outros maridos soiltários que esperavam o tempo passar. Depois de umas três horas (foi o meu tempo psicológico – as compras duraram uns 45 minutos, na verdade), saímos para a janta no Marcelo Batata. Novamente, sopinha pra mim. Ô castigo. As meninas não são muito da janta, então foi sopa e saladas.


Estamos tentando fazer o máximo que podemos, mas não importa quanto tempo você passe em Cusco, será impossível fazer tudo. Desmaiamos no hotel.

Dia 9 – Cusco – 25/07


Dormimos até mais tarde, até o limite do tempo do café da manhã – é preciso descansar. O dia anterior foi puxado demais. Descobrimos com o guia da Lonely Planet que o bairro de San Jeronimo, onde estamos, é um bairro cool, fora do eixo mais turístico da cidade, bonito, autêntico e que vale a pena ser visitado. Com isto, ficamos mais calmos – não é preciso estar próximo da Plaza de Armas para se aproveitar Cusco.

A foto clássica na Plaza de Armas de Cusco.


De táxi, começamos a explorar a cidade pelo centro histórico. O taxista tem cara da selva amazônica, o rosto é negro e é índio, ele vem de Porto Maldonado, que fica na fronteira com o Acre. No rádio, música brasileira ruim – mas o português dos autofalantes do carro me chamou a atenção e puxei papo. O menino estuda direito em Cusco, curso que aqui dura seis anos. Ele dirige um Suzuki minúsculo (marca que no Peru é tão popular quanto no Chile, talvez pela facilidade de importação pelo Pacífico), caindo aos pedaços e com um cobertor sobre o painel frontal, abaixo do para-brisa.

Qoricancha, tempo do sol dos Incas - e uma igreja espanhola construída em cima.

 
A perfeição dos encaixes incas. Tudo a prova de terremotos. Dentro das pedras, há encaixes como os de um quebra-cabeca.
O cobertor, que evita que o painel entre em ebulição com o calor cuzquenho de inverno que nos surpreende de dia, vivia caindo e de tempos em tempos, como um tique nervoso, ele tira a mão do volante e puxa o cobertor. Fiquei pensando se no Peru não está acontecendo o mesmo problema que no Brasil: o ensino superior ficou mais acessível, mas não houve desenvolvimento suficiente na economia para absorver a quantidade de novos bacharéis. No caso do direito, hoje o Brasil é o país que mais tem bacharéis do mundo – muitos não vão nunca passar no teste da OAB e a grande maioria vai trabalhar em outras profissões. Como taxista, por exemplo. É de se pensar se uma população com mais tempo de estudo não é melhor para qualquer país – uma justificativa para mais universidades. Mas o ideal não seria o superior técnico? O Brasil ainda vê com preconceito este tipo de ensino – mas é o padrão do superior  (depois do médio) na Europa.

Fran feliz no artesanato de San Blás.
Você vai andando por Cusco e acha estes pátios espanhóis em todo o canto.


Cusco é a cidade mais bonita do Peru – difícil pensar diferente. O centro histórico é magnífico. E o contraste violento (violência é uma palavra-chave para se entender o Peru) entre a civilização Inca e a Espanhola está visível em todos os lados. Talvez a gente não perceba tanta violência na colonização portuguesa no Brasil porque aquilo que é visível para nós o tempo todo fique invisível. Ou porque a tipologia da violência do Brasil que permaneceu é de outra natureza: a escravidão – não está na arquitetura da cidade, mas na brutalidade das relações sociais, mais difícil de ser apreendida aos olhos de viajante. Ou porque aqui havia de fato um império e o choque entre impérios é mais traumático e visível – como entre mouros e cristãos. De um jeito ou de outro, é chocante.

Ladeiras de San Blás, já anoitecendo.


Começamos o dia no Qoricancha, o antigo templo de cerimônias inca. Hoje, há uma igreja católica exatamente sobre o templo – a mesma coisa que os espanhóis fizeram com as mesquitas, depois da expulsão dos árabes. Tudo aquilo que se diz sobre os incas é verdade – comparando com os demais povos indígenas do continente, o desenvolvimento é mesmo impressionante, em vários aspectos. Há tecnologia, arquitetura, arte, culinária, complexa hierarquia social, estradas, um império gigantesco que abrange quase todos os limites dos Andes. Mas há uma armadilha que é fácil cair aqui (e que é induzida o tempo todo por guias e pelos museus de Cusco): pensar que os incas eram anjos, os espanhóis os demônios e eis uma visão completamente equivocada da história. É bom lembrar, para começo de conversa, que os próprios incas também eram conquistadores e também montaram seu próprio império, com armas e sangue.

No centro histórico de Cusco.


No museu do Qoricancha, um quadro compara a religião cristã com a inca. E outro compara a filosofia ocidental com a inca. É um panfleto para se ter ódios do europeus – quanto à violência, é difícil discordar e não se compadecer do massacre que aconteceu. Mas, como todo panfleto, é uma caricatura, uma simplificação grosseira e uma peça de propaganda. Por exemplo, no quadro comparativo, a ciência ocidental é vista somente como um modelo de dominação da natureza – e não, também, como uma forma bastante poderosa e eficiente de explicação de mundo. Uma criança ocidental, ainda no primário, é capaz de entender cientificamente por que uma chuva ocorre. Mas para os incas, era uma questão exclusivamente mística e crianças foram sacrificadas aos montes para que os deuses fizessem chover. Em tempos em que, no ocidente, é proibido comparar civilizações – ainda um mea culpa de toda a violência do eurocentrismo – é o caso de se perguntar se, tivessem contato com uma explicação racional do mundo, os sacrifícios (ainda comuns na África) continuariam acontecendo no mundo não ocidental.

Todos aqueles ocidentais que idolatram as civilizações não ocidentais deveriam se perguntar por que permanecem ocidentais. Em uma aula do mestrado da filosofia, um debate, um aspecto não filosófico, mas importante na comparação de civilizações: eram os alemães da Berlim comunista (aquela que se autoproclamava o paraíso na terra) que tentavam pular o muro e não o contrário. O fato é que faz parte da natureza humana fazer comparações e, como humanos, são os índios que desejam o ocidente e não o ocidente que deseja morar com os povos da floresta. É uma discussão difícil – o ocidente é multifacetado, e as guerras e as religiões ocidentais dos séculos passados não são as mesmas do presente. O erro parece acontecer em duas frentes: infantilizar a história e simplificar o que significa ser ocidental.

Noite em San Blás.



Antes do Qoricancha, fomos para o museu de arte popular (uma bela amostra do artesanato cusquenho), almoçamos no Ciciollina (um explêndido restaurante italiano, no coração do centro histórico) e subimos as maravilhosas ladeiras de São Blás, até encontrarmos a igreja. De lá, voltamos a pé pelo centro histórico, passamos novamente pela Plaza de Armas e avançamos até quase o mercado San Pedro, passando por muitas igrejas – como na colonização brasileira em Minas, há pencas de igreja. Voltamos tudo, jantamos no Sara (eu comi uma sopa de verduras, já melhor) e desmaiamos no hotel.